Quando adentramos o universo das filosofias esotéricas, nos deparamos com uma variedade de sistemas de crenças, cada um com suas próprias práticas e visão de mundo. Duas dessas filosofias, Specula e Thelema, embora compartilhem alguns temas em comum, são marcadamente diferentes em vários aspectos. Este artigo busca explorar essas diferenças, delineando uma comparação abrangente entre essas duas filosofias.
Origem e Significado dos Nomes
François Rabelais
Thelema é uma palavra derivada do grego que se traduz como "vontade" ou "intenção". Esta filosofia tem suas origens nos escritos do filósofo e alquimista renascentista François Rabelais, que imaginou um "Mosteiro de Thelema" cuja regra primordial era "Faze o que tu queres". Contudo, a filosofia de Thelema como conhecemos hoje foi principalmente estruturada por Aleister Crowley no início do século XX. O nome é um reflexo direto do fundamento central desta filosofia – a busca e o cumprimento da Verdadeira Vontade, que representa o propósito mais autêntico ou a missão existencial de um indivíduo. Este princípio de autodeterminação guia todos os thelemitas em suas jornadas espirituais e mágickas.
Já Specula, do latim "speculum", significa espelho, uma palavra profundamente simbólica. A escolha deste nome para a filosofia está intimamente ligada à magia usando espelhos, que constitui um elemento integral em seus ensinamentos. Neste contexto, os espelhos são usados como ferramentas para meditação, clarividência, adivinhação, e outras práticas mágickas.
No entanto, Specula carrega consigo outros significados. Por exemplo, o termo está ligado à lua, frequentemente descrita na literatura esotérica como um espelho celestial, refletindo a luz do sol e, simbolicamente, servindo como uma representação do inconsciente, do feminino, e do mistério.
Além disso, Specula tem uma conexão histórica com a Magia do Caos através de Peter J. Carroll, um dos fundadores deste movimento. Carroll criou um website chamado "Specularium", que serve como um repositório para suas ideias e trabalhos relacionados à Magia do Caos. Assim, Specula carrega em seu nome uma reverência a esta influência, ao mesmo tempo em que incorpora o simbolismo da introspecção, da reflexão, do autoconhecimento e da capacidade de moldar a realidade de acordo com nossas intenções e vontades, assim como um espelho reflete a nossa imagem.
Criação
A filosofia Thelema foi gerada por Aleister Crowley em 1904, quando afirmou ter recebido "O Livro da Lei" de uma entidade denominada Aiwass. Esse sistema de crenças ganhou reconhecimento mundial por sua visão sobre liberdade individual e o papel do divino na vida humana.
Por outro lado, a filosofia Specula surgiu de Lua Valentia. Nascida em 1990, no Brasil, Valentia entrou no mundo do ocultismo através da Magia do Caos em 2009. Bruxa do Caos, Valentia introduziu no Brasil o sistema dos Quarenta Servidores, criado por Tommie Kelly, e fez contribuições significativas para o movimento esotérico ao traduzir importantes obras ocultistas para o português.
Lua Valentia não afirma ter recebido a Specula de nenhuma entidade senão de si mesma. Como divindade criadora, Valentia afirma que o objetivo final do magista é criar, manter e expandir o seu próprio Sistema Mágicko. São os resultados que falam por si mesmos e revelam a habilidade do Sistema Mágicko de funcionar.
Liberdade e a Busca pela Verdadeira Vontade
A Verdadeira Vontade pode ser considerada como o propósito mais profundo e autêntico de um indivíduo, aquela força motriz intrínseca que se encontra além das distrações superficiais da vida cotidiana e dos desejos passageiros. É o verdadeiro eu, a essência da identidade de um indivíduo, que busca expressão e realização. No contexto do Thelema, descobrir a Verdadeira Vontade é o objetivo fundamental do praticante, um processo de autoconhecimento e autodesenvolvimento que leva à autenticidade e à realização espiritual.
Encontrar a Verdadeira Vontade não é um processo fácil ou rápido. Requer uma introspecção profunda, um exame rigoroso dos próprios desejos, medos, ambições e crenças. É um processo de eliminação dos condicionamentos sociais, dos preconceitos e das ilusões que muitas vezes nos cegam para o nosso verdadeiro propósito e potencial.
O caminho para descobrir a Verdadeira Vontade é único para cada pessoa. Para alguns, pode envolver práticas meditativas, introspecção, ou até mesmo uma experiência de quase-morte. Para outros, pode ser um processo gradual de crescimento pessoal e autoanálise.
No final, a busca pela Verdadeira Vontade é, em essência, uma jornada de autodescoberta. É um convite para se conhecer profundamente, para se conectar com a essência do ser e para encontrar um propósito que esteja alinhado com o verdadeiro eu. Descobrir a Verdadeira Vontade é, assim, um passo crucial no caminho para a liberdade pessoal e espiritual.
Inerente à filosofia do Thelema está o preceito: "Faze o que tu queres será o todo da Lei". Este adágio, profundamente enraizado na prática thelêmica, é interpretado como uma exortação para descobrir e seguir a Verdadeira Vontade, a expressão mais pura do eu autêntico, livre de restrições e condicionamentos externos. Este conceito não apenas realça a liberdade individual e a autenticidade, mas também serve como um lembrete constante para os adeptos de Thelema de que eles são encorajados a trilhar seus próprios caminhos, a desvendar suas verdades interiores, em vez de se conformar passivamente com normas ou expectativas sociais impostas.
Da mesma forma, Specula também adota uma perspectiva de liberdade de crença e compreensão da Verdadeira Vontade, mas com sua própria interpretação e nuances. Essa filosofia estimula seus seguidores a aventurarem-se na jornada do autoconhecimento, a explorarem os domínios ocultos e a espiritualidade de maneira independente e autêntica. Esse princípio se traduz em um chamado para a busca do verdadeiro eu, livre de dogmas e imposições, promovendo um ambiente de autodescoberta e crescimento espiritual. Assim como Thelema, Specula considera a experiência individual como a autoridade máxima, enfatizando a jornada pessoal de cada um rumo à iluminação e ao autodomínio.
A fonte primária para entender Thelema e a importância da Verdadeira Vontade é "O Livro da Lei" (ou "Liber AL vel Legis"), o texto sagrado de Thelema ditado por Crowley em 1904. Neste livro, são apresentados os princípios fundamentais e as ideias centrais da filosofia thelêmica. Além disso, as obras de Aleister Crowley, como "Magick in Theory and Practice" e "The Book of Thoth", podem fornecer mais insights sobre a visão de Thelema em relação à Verdadeira Vontade e seus objetivos finais.
Autodeificação: Além da Verdadeira Vontade
Tanto Crowley quanto Valentia abordam a ideia de moldar a realidade por meio do domínio da Vontade e do poder mágicko. Em "Magick in Theory and Practice" (Magia em Teoria e Prática), Crowley explora o conceito de que o praticante da magia tem a capacidade de influenciar e transformar o mundo ao seu redor através da vontade e da intenção. Ele enfatiza que a magia é um processo de autoaperfeiçoamento e autotransformação que leva ao domínio da vontade e à capacidade de moldar a realidade de acordo com os desejos e intenções do magista.
Em "Liber ABA" (também conhecido como "Magick Book Four"), Crowley aborda a importância da crença e da visualização como ferramentas para manifestar os desejos e a vontade pessoal. Ele destaca que a mente e a imaginação são poderosas forças criativas que podem ser utilizadas para construir e manifestar uma realidade desejada. Embora Crowley não tenha usado explicitamente a frase "criar sua própria realidade", ele defende a ideia de que o praticante de magia tem o poder de influenciar e moldar sua experiência e a realidade circundante através do domínio da vontade e da aplicação de técnicas mágickas adequadas.
Para a Specula, a busca pela Verdadeira Vontade é vista como apenas o primeiro passo em direção a um objetivo maior e mais transcendente: a autodeificação. Isso implica em transcender as limitações da existência humana comum e se tornar uma divindade criadora em seu próprio universo pessoal.
Tanto Lua Valentia quanto Crowley enfatizam que o objetivo final não é apenas influenciar a realidade externa, mas alcançar um estado de autorrealização divina. Nesse estado, o magista se torna consciente de sua própria divindade interior e vive em harmonia com a Vontade Suprema, tornando-se uma divindade em seu próprio universo pessoal.
Há muitas semelhanças entre as visões de Crowley e Specula sobre a capacidade do indivíduo de moldar a realidade e buscar a autorrealização, Valentia enfatiza ainda mais o caminho da autodeificação como um objetivo supremo. Para Specula, a jornada do magista não se limita à descoberta da Verdadeira Vontade, mas se estende à transformação do praticante em uma divindade criadora capaz de moldar e sustentar sua própria realidade, o que inclui a capacidade de criar e manter um Sistema mágicko próprio.
Desta forma, tanto Crowley quanto Valentia reconhecem o poder do indivíduo de moldar a realidade e buscam a autorrealização, enfatizando a jornada rumo à autodeificação, transcendendo as limitações da existência humana comum e se tornando uma divindade criadora em seu próprio universo pessoal.
Entidades e Deidades
A filosofia de Thelema possui uma notável característica que envolve a convocação de entidades divinas ou sobrenaturais. No centro dessa prática estão Nuit, Hadit e Ra-Hoor-Khuit, figuras consideradas as principais divindades dentro da doutrina thelêmica, conforme descrito em "O Livro da Lei". Nuit representa o infinito e a possibilidade ilimitada; Hadit é a consciência individual, uma centelha de vida, e Ra-Hoor-Khuit, uma deidade solar representando a autoridade e a força soberana.
Expandindo o panteão, Thelema também incorpora a Goetia, um conjunto de daemons na magia cerimonial, além de venerar deidades egípcias e uma miríade de outros seres celestiais e terrestres. Essa complexa estrutura de entidades é essencial para a prática ritualística thelêmica e representa a diversidade e a riqueza da experiência humana e espiritual.
Por outro lado, Specula, outra filosofia esotérica, fundamenta-se na criação e manipulação de formas-pensamento, conhecidas como Specularis. Dentro da visão de mundo Specula, a reencarnação é entendida como um processo opcional.
A filosofia Specula concentra-se em Specularis, que são formas-pensamento criadas com a intenção de servir ao magista. Adicionalmente, Specula encontra suporte em deidades externas, com predominância do panteão grego, mas não se limita a ele. Entidades como Baphomet, a divindade associada aos templários, Ishtar, a deusa babilônica do amor e da guerra, e Chaomeras, também figuram no leque de entidades que influenciam e são utilizadas na prática de Specula.
Magia e Práticas Ritualísticas
No fascinante e complexo mundo das práticas ritualísticas, a filosofia de Thelema estabelece suas fundações na magia cerimonial e tradicional. Essa forma de magia é altamente estruturada e simbólica, geralmente envolvendo a utilização de rituais específicos, instrumentos mágickos, invocações, e até mesmo a vestimenta apropriada para a realização de um ato mágicko. Essas práticas são destinadas a invocar energias divinas ou sobrenaturais, muitas vezes com o objetivo de autoaperfeiçoamento espiritual, descoberta da Verdadeira Vontade ou realização de desejos materiais.
A magia cerimonial do Thelema é profundamente enraizada em tradições esotéricas mais antigas, mas também incorpora elementos de novos sistemas de crenças e práticas. A adesão a certas práticas rituais é vista como um meio de entrar em contato com a Verdadeira Vontade e as forças divinas, facilitando assim a transformação pessoal e espiritual.
Por outro lado, Specula introduz uma abordagem consideravelmente diferente para a prática mágicka, conhecida como tecnomagia. A tecnomagia é uma inovação contemporânea na arte da magia que mistura a tecnologia com a Magia do Caos. Este é um método não-linear e altamente individualista de prática mágicka que muitas vezes envolve a criação e manipulação de formas-pensamento, também conhecidas como Specularis.
A tecnomagia utiliza o poder da tecnologia para amplificar, direcionar e manifestar intenções mágickas. Isso pode envolver o uso de computadores, internet, realidade virtual e outras tecnologias emergentes como ferramentas para a criação e realização de rituais mágickos. O foco aqui está na flexibilidade e na experimentação, na personalização da prática mágicka para atender às necessidades e desejos individuais do praticante.
Estas duas abordagens à magia e às práticas ritualísticas demonstram a diversidade e complexidade do universo esotérico, oferecendo aos adeptos diferentes caminhos para a exploração e o autoaperfeiçoamento espiritual.
O Além e o Astral: Reencarnação e Karma
Thelema adota uma abordagem aberta e flexível quando se trata de conceitos como reencarnação e karma. Não há dogmas fixos ou princípios definitivos sobre estes temas dentro da filosofia thelêmica. Portanto, a crença em tais conceitos é uma escolha pessoal para cada adepto, baseada em sua própria exploração e compreensão espiritual. Alguns thelemitas podem aceitar e integrar a ideia de reencarnação e karma em seu caminho espiritual, enquanto outros podem rejeitá-los.
Specula, similarmente, valoriza a liberdade de crença, mas a crença da reencarnação é aceita por Valentia. Contudo, há uma nuance única na perspectiva Specula: a reencarnação é vista como um processo opcional, não um ciclo inexorável de nascimento, morte e renascimento. Isso proporciona aos seguidores um grau de autodeterminação que pode não estar presente em outras tradições esotéricas. Quando se trata de Karma, a doutrina Specula se afasta da ideia convencional, geralmente desconsiderando-a.
Aleister Crowley abordou a questão da vida após a morte em várias de suas obras, mas suas visões sobre o assunto não são definitivas ou uniformes. Crowley acreditava em explorar experiências espirituais e transcendentais durante a vida terrena, mas tinha uma abordagem mais cética e desafiadora em relação a conceitos tradicionais de vida após a morte.
Em "Magick Without Tears" (Magia Sem Lágrimas), Crowley expressa um certo ceticismo em relação às crenças convencionais sobre a vida após a morte. Ele questiona a noção de um "céu" ou "inferno" como recompensas ou punições após a morte, sugerindo que essas ideias são baseadas em medo e superstição.
No entanto, é importante destacar que, apesar de sua postura cética, Crowley também explorou práticas e técnicas que envolvem a comunicação com entidades espirituais e a exploração de planos sutis de existência. Ele estava aberto a experiências místicas e transcendentais, mas tinha uma atitude desafiadora em relação a dogmas e crenças pré-estabelecidas.
Valentia adota uma abordagem diferente em relação à vida após a morte e à comunicação com entidades espirituais. Em contraste com a atitude cética de Crowley, Valentia acredita firmemente na possibilidade de se comunicar facilmente com diversos tipos de seres astrais e entidades por meio de práticas como a tecnomagia, técnicas de sonhos lúcidos e viagens astrais.
Segundo Valentia, a tecnomagia permite aos praticantes estabelecerem conexões com seres astrais e entidades através de dispositivos eletrônicos e da internet. Essa abordagem tecnomágica oferece métodos práticos e acessíveis para explorar dimensões astrais e se comunicar com entidades além do plano físico.
Valentia também destaca a importância dos sonhos lúcidos e das viagens astrais como meios eficazes de entrar em contato com o mundo espiritual. Através da prática do sonho lúcido, o indivíduo pode conscientemente explorar os reinos astrais, interagir com entidades e obter informações valiosas. Já as viagens astrais permitem que o praticante se projete conscientemente para fora do corpo físico, explorando outras dimensões e estabelecendo comunicação direta com seres astrais.
Valentia compartilha suas técnicas e conhecimentos em livros como "Magia do Caos Avançada", "Arcanos da Aliança" e "Kalise - Magia do Caos". Nestas obras, ela descreve de forma detalhada os métodos e práticas que podem ser utilizados para alcançar essas experiências astrais e se comunicar com seres além do plano físico. Seus ensinamentos oferecem orientações práticas e insights para aqueles que desejam explorar esses reinos e expandir seu entendimento do mundo espiritual.
Universos Astrais
As diferenças entre Thelema e Specula também se manifestam em suas concepções do plano astral. Specula elabora um domínio astral específico chamado Liran Van Garden. Este é descrito como o reino em que os Specularis - formas-pensamento utilizadas pelos seguidores de Specula - habitam. Além disso, Liran Van Garden é também o local para onde os adeptos da Specula acreditam que suas almas viajam após a morte.
Contrastando com isso, Thelema não define ou descreve um local astral específico associado à vida após a morte. Embora algumas práticas thelêmicas possam envolver a viagem astral ou outras interações com planos espirituais, não há um lugar designado no "além" que seja universalmente aceito ou ensinado dentro da tradição thelêmica. Esta abordagem é consistente com o foco de Thelema na descoberta individual e na auto-direção espiritual.
Lua Valentia & Aleister Crowley
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Inomináveis Saudações.
Um texto muito agradável e interessante de ler, escrito com habilidade grandiosa. Muito obrigado pela publicação do mesmo aqui.