top of page
Ogam Ein Sof

As bases filosóficas da Magia do Caos


“Quando os deuses eram mais humanos, os homens eram mais divinos” - Schiller

O filósofo Friedrich Nietzsche faleceu no último ano do século XIX, e não poderia existir ano mais simbólico para sua morte. Suas ideias influenciaram decisivamente o século XX e chegaram ao século XXI mais vigorosas do que nunca, como ele mesmo previra. Seu pensamento iconoclasta denunciava milênios de hipocrisia que adoeceram os homens. Em sua busca pela vida— e não pela "verdade" — ele mergulhou no caótico universo da alma humana.

Mas o que nem mesmo Nietzsche poderia prever era que um bruxo solitário iria pegar seu martelo emprestado para demolir o mundo do ocultismo e construir os alicerces filosóficos da Magia do Caos. Como especificamente se deu essa influência? O objetivo deste texto é responder essa pergunta.

A vitória de Platão e a morte de Deus

Para Nietzsche, todo o pensamento após Platão era doença, uma verdadeira "tragédia" que anunciava a realidade como frágil sombra de um mundo perfeito, acessível apenas através razão. Nesta idealização platônica, nosso corpo tornou-se um "prisão da alma", que anseia libertar-se e viver para sempre contemplando as formas perfeitas.

Contudo, antes de Platão, os primeiros grandes pensadores filosofavam com os deuses e a natureza. "Tudo está cheio de deuses", exortou Tales de Mileto, o primeiro do todos os filósofos. E o povo grego vivia seu cotidiano permeado de seres divinos que lhes emprestavam seu brilho, força, poder, inteligência e astúcia.

E cada tipo de personalidade tinha seu deus protetor e inspirador. Quanto mais próximos dos deuses, mais fortes, nobres, orgulhosos, bravos e sábios eram os homens e as mulheres. E quanto mais distantes, mais fracos, covardes e estúpidos.

Toda a beleza e criatividade da cultura grega tinha sua origem na articulação dessa relação sagrada. A grande força dessa cultura não veio, portanto, da negação desse mundo mas da aceitação completa da realidade e seus mistérios; da profundidade da alma que se revela no caos e na ordem. Tal foi o brilho da Grécia Antiga que nunca foi apagado, brilho esse que conquistou até seus conquistadores.

Entretanto, a filosofia de Platão venceu esta batalha contra os gregos mais antigos, ainda que ele não tivesse culpa dos desdobramentos posteriores de seu pensamento. A razão foi entronada como rainha soberana do ocidente, porém, a rainha tinha perdido seu rei, afinal, as relações entre razão e desrazão, ordem e caos, sensatez e loucura sempre foram a fonte criativa da vida. O Logos, razão universal percebida por todos os filósofos, será priorizada em detrimento de tudo o mais.

Os deuses e toda a miríade de seres mitológicos — mediadores simbólicos dessa relação com suas complexidades e personalidades — foram classificados como algo que "não é racional".

E assim os homens passaram a negar as poderosas forças que nos acompanharam durante milênios. Nem mesmo Platão teria sido tão exagerado, pois na voz de Sócrates exortou as loucuras do amor como fonte das mais belas e corajosas ações humanas. E mesmo Sócrates ouvia atentamente seuDaemon, a voz interior que lhe trazia os alertas dos deuses.

Com a chegada da Era Medieval a religiosidade ocidental assimilou a ideia platônica. "O Logos dos filósofos se fez carne em Cristo", declarou "Santo" Agostinho, o filósofo maior dessa época. Uma nova versão do mundo perfeito das ideias surge, mais empobrecida e dessa vez com um só dono no céu e suas autoridades na terra (homens santos de moral duvidosa). E a crença nesse único Deus foi convenientemente qualificada pelos filósofos cristãos como "racional", como se a desrazão fosse algo necessariamente ruim.

E assim fomos reduzidos a pecados, palavras de ordem vazias, citações bíblicas alarmistas, controle social, medo do inferno, fofocas e hipocrisia. Talvez, devido a tanta repressão da natureza humana surgiu também uma necessidade tarada por conversão — que disfarçada de conversão à verdade ou a Deus é apenas a "redução do outro a mim mesmo", como diria o filósofo Emmanuel Lévinas. Orgulho, força e vaidade, atributos antes divinos, agora tornaram-se coisas inspiradas pelo Diabo.

Não se trata apenas de desmerecer o cristianismo, que teve seus méritos na formação do ocidente, mas sim de mostrar a passagem da mentalidade grega para a cristã, conforme Nietzsche a descreveu nas suas obras O Nascimento da Tragédia, a Genealogia da Moral e Além do Bem e do Mal". Se existem dúvidas sobre essa visão de Nietzsche, este fragmento confirma o que foi dito até aqui:

"A religiosidade dos gregos antigos corresponde à gratidão de homens nobres diante da natureza e da vida. Mais tarde, quando o populacho preponderou na Grécia, surgiu o medo da religião; preparava-se o cristianismo."

Friedrich Nietzsche

Além do Bem e do Mal.

Com René Descartes a Era moderna trouxe a matematização do mundo e o entronamento definitivo da razão: nascia o pensamento científico. Além dele, tudo seria loucura e insensatez. Ou "não é cientificamente comprovado".

Apesar da revolução científica, os tempos medievais legaram à Era Moderna um sistema de dominação que, baseado no medo, na obediência irrestrita e na virtude recatada, prometia a "vida eterna" — quando então todo esse sofrimento causado pelos desejos reprimidos da alma e do corpo deixariam de existir. Tal é a perspectiva histórica de Nietzsche.

E assim a razão perdeu seu brilho e a religiosidade sua fonte. "Deus está morto", ao contrário do que muitos pensam, não é um ataque de Nietzsche ao Deus cristão. O mais insolente dos filósofos não irá poupar o cristianismo de suas críticas, contudo, esta frase refere-se especificamente à morte do sagrado; à negação de nossa profundidade.

Nietzsche prepara então seu arsenal filosófico disposto a atingir de morte toda essa mentira. Como num ritual profano de um pagão atrevido, o filósofo invoca o deuses Apolo e Dioniso, suas mais poderosas armas. E a partir daqui começa nosso caminho até Austin Osman Spare e a Magia do Caos.

Apolíneo e dionisíaco - o dualismo essencial da alma humana

Nietzsche afirmou que o brilho da civilização grega — anterior à Platão — se deveu à capacidade de articular duas forças que em princípio são opostas. Chamou de apolíneo (relativo ao deus Apolo) o princípio que representa a razão como beleza harmoniosa e comedida, organizada. E denominou dionisíaco (relativo ao deus Dioniso) o princípio que representa a embriaguez, o caos, a falta de medida, a paixão. Tudo isso se refletia de forma espetacular na grande obra de Homero, a Ilíada e Odisséia, obra fundadora da civilização grega.

Para Nietzsche, nenhuma arte, filosofia ou religiosidade podem ser puramente apolíneas (centrada na razão, na ordem, na regra e na harmonia) nem puramente dionisíaca (centrada na desordem, no caos e na embriaguez). A criação humana depende da articulação desses dois princípios, uma vez que o dionisíaco nos dá o principio criativo e o apolíneo nos dá a ordem e a harmonia necessárias para a produção de algo belo. São essas duas forças opostas que nos fazem plenamente humanos. E a falta de uma delas nos torna aleijados na alma.

Pois essa é a crítica filosófica de Nietzsche à Era Moderna: ficamos sobrecarregados de apolíneo, preocupados com formas, regras morais, provas científicas e aparências vazias tanto na religião quanto na filosofia e na cultura. A pequena lagoa consciente da vida tornou-se mais importante que nossa oceânica parte inconsciente.

O caos, a desordem, as paixões e tudo aquilo que faz parte do que temos de mais humano foi desterrado em um inferno de Dante. Desde então, em busca de uma desequilibrada perfeição apolínea, vivemos em um inferno cultural e religioso que nega nossa própria humanidade dualista.

Aqui surgiu a poderosa ideia nietzschiana de um "alçapão da alma" que guarda toda nossa herança coletiva e também onde escondemos tudo o que é proibido, bem como os traumas, alegrias e tristezas de nossa jornada. O que é "santo" e correto está na luz, nesta falsa e adoecida persona que apresentamos aos outros. E aquilo que negamos ficou nas sombras, como nos filmes de terror onde olhos espreitam no escuro e formas obscuras atravessam correndo.

Todas as milhares de cores e nuances da alma, representadas nas mais belas mitologias antigas, tornaram-se pecados capitais. "Pecado é um jovem saudável arrependido em uma Igreja", debochou Nietzsche. Raiva, sexo, orgulho, inveja e vários outros sentimentos e energias interiores que sempre movimentaram os homens agora fazem parte de uma legião demoníaca chefiada por Satã.

Mesmo sendo um filósofo moderno, Nietzsche corajosamente recorreu à mitologia como linguagem filosófica. Em vez de ser ridicularizado, acabou inspirando pensadores que viram nele uma volta das cores, da poesia filosófica e dos mistérios para uma Era Moderna cinza, vazia e decadente.

Aqui está a origem da teoria do inconsciente de Freud e do inconsciente coletivo de Jung, as pesquisas sobre a loucura de Foucault, o interesse de Heidegger pelos pré-socráticos, as influências literárias de Hermann Hesse e Albert Camus.

A lista é grande e estamos falando apenas da poética de Nietzsche, pois suas contribuições para a filosofia da mente e da linguagem também influenciaram o pensamento do genial Wittgenstein, um dos maiores filósofos do século XX. Isso tudo sem falar de suas influências no cinema e nas artes como um todo.

O mérito de Nietzsche não é ter inspirado a ideia de inconsciente, nem outros pensadores e escritores, mas trazer de volta à filosofia as forças mais profundas da natureza humana, até então soterradas em razões e regras morais que adoeceram os homens.

Contudo, Nietzsche também influenciou uma figura improvável no campo da magia. Austin Osman Spare surge com uma ideia ousada: traçar uma relação direta e particular com essas forças poderosas sem pedir licença para magos, mestres ou alguma escola de mistério.

E a arte é a chave que abre o alçapão de nossa alma. Porque deveríamos pedir licença para acessar algo tão nosso? Em suma: a magia é altamente particular, artística e não responde à ninguém. E o subconsciente é mais poderoso do que sequer podemos imaginar. Ele é o próprio fundamento da magia.

Diógenes, um filósofo caótico

Ainda que o objetivo deste texto seja traçar uma relação entre Nietzsche e Spare, mostrando as bases filosóficas da Magia do Caos, no que diz respeito à disposição de espírito, humor, cinismo e desprezo pelo supérfluo e pela futilidade, o filósofo Diógenes poderia muito bem ser um caoista.

O caoista seria como Diógenes — o filósofo da Grécia Antiga "cínico como um cão" — que ao beber água em uma fonte com sua cuia, viu uma criança bebendo com as mãos e jogou fora a cuia, pois percebeu que era desnecessária.

Diz uma anedota (já clássica) sobre ele que, uma vez Alexandre, o Grande, ficou sabendo de Diógenes ao passar por Atenas. Resolveu então testar o "mais sábio dos homens". Diógenes estava tomando banho de sol e Alexandre colocou-se em sua frente e disse-lhe que poderia pedir o que quisesse para "o rei de todo o mundo", ao que Diógenes apenas respondeu: "então saia da frente do meu sol".

Um dia na praça de Atenas o "filósofo dos cães" parou para ouvir um astrólogo que explicava sobre os "astros errantes" (os planetas). “Não diga asneiras, meu amigo — gritou Diógenes — não são os astros que erram, mas estes aqui”, e apontou para aqueles que assistiam.

Austin Osman Spare: a magia como arte e subversão

A magia — ao contrário de todo o ocidente — nunca abandonou Dioniso. Porém, ela também se cercou de hierarquias e autoridades que criaram uma escada de protocolos. A doença ocidental da forma sem conteúdo também atingiu o mundo da magia.

Spare, porém, reagiu energicamente a isso tudo: "magia é tão somente a habilidade natural de atrair sem perguntar". Pois esta é a proposta subversiva de Spare: fazer com que cada homem e cada mulher faça magia sem pedir licença nem desculpas, para o desespero e constrangimento daqueles que se arrogam autoridades.

Nietzsche havia dito que "temos a arte pra não morrer da verdade". E a "verdade", segundo ele, é toda essa insuportável virtude medíocre. Este Apolo distante de seu irmão Dioniso — este ridículo semblante sério com dedo em riste e o sorriso louco e vazio — sendo a arte nossa fuga para as fontes represadas da vida. Spare, entretanto, não pretendia fazer da arte uma fuga, mas uma chave de acesso para nossas habilidades naturais adormecidas e adoecidas.

A ideias nietzschianas de uma fonte de vida reprimida — este "alçapão da alma"—, da riqueza mitológica, da crítica às religiões, da criação de nossos próprios valores e da singularidade de cada ser humano foi o ponto de partida de Spare. Que cada um crie sua arte e sua magia particular, que invoque o caos dentro de si e faça nascer sua própria estrela dançarina. Pecado é pedir licença.

Assim como Nietzsche percebeu o adoecimento da cultura ocidental, Spare também percebeu que a mesma coisa ocorreu no mundo da magia — agora soterrado em um entulho de simbolismos, grandes manuais, rituais sofisticados, hierarquias e guardiões dos portais.

Ele estava presente em um dos momentos mais populares do ocultismo, em uma sociedade londrina do início do século XX empolgada com o mundo místico, os ventos do oriente e as ordens de mistérios. E tendo conhecido Aleister Crowley, o mais popular e narcisista dos magos, Spare escreve no seu Livro do Prazer:

"É simbolizando que nos tornamos simbolizados? Se eu me coroar rei, serei eu um rei? Melhor seria se tivessem pena de mim. Esses magos, cuja desonestidade são sua segurança, são apenas os desempregados dos bordéis. Magia é tão somente a habilidade natural de atrair sem perguntar. Suas práticas comprovam sua incapacidade, eles não têm magia para intensificar o normal, a alegria de uma criança ou de uma pessoa saudável."

Spare também acredita que nossa alma é um oceano profundo de simbolismo e herança humana, mas não gostava de exageros, ritos teatrais e complexidades desnecessárias.

Para quem lhe forçava alguma demonstração, ele puxava do bolso um papel, desenhava um símbolo (mais especificamente um sigilo) e apenas se concentrava nele. No relato de uma de suas invocações, quando um elemental preenche a sala e aterroriza os presentes, ele afirma que aquela criatura residia no subconsciente.

Falar aqui sobre a natureza do subconsciente em Spare, o conceito de Kia e a controversa relação entre esquecimento e realização do desejo — as bases taoistas do pensamento de Spare, inspirado na não-ação de Lao Tsé, onde "nada fica sem ser feito" — fugiria do objetivo principal do texto. Uma pena, pois consiste, talvez, nos aspectos mais genais do pensamento do bruxo inglês.

Spare detestava o termo "inconsciente" cunhado por Freud, que ele considerava uma farsa. Talvez pela roupagem científica que Freud e Jung quiseram dar ao "alçapão de Nietzsche" e suas poderosas forças primitivas e mitológicas. Para Spare, a arte era o legítimo acesso para um universo incompreensível à ciência.

"A arte é superior à ciência", declara Spare. E por mais que a ciência nos cure o corpo e construa tecnologias milagrosas, no que diz respeito à alma e suas profundezas ela é impotente. Apenas a arte acessa a alma. E a magia nada mais é que um tipo de arte muito particular — podendo inclusive ser feita pelo puro prazer.

Este pode ser um dos motivos pelos quais muitos praticantes, que buscam na magia poder e solução de problemas, acabam se dedicando a realizar rotineiramente algum ritual apenas pelo prazer estético, bem estar, alívio ou sentimento de completude que ele traz.

Assim como o filósofo alemão, Spare não acredita na mentira disfarçada de sacralidade e mergulha na verdadeira fonte da magia: as profundezas da alma humana, que, como vimos, ele denominou subconsciente. Com essa ideia simples em mente ele dá início ao que seria mais tarde, com Peter Carrol, a Magia do Caos — tão demolidora quanto as ideias que lhe fizeram nascer.

A essência dualista da natureza humana foi mapeada por Spare em seu Alfabeto do Desejo, que tem o objetivo de mostrar que cada sentimento humano tem seu oposto. Algo corriqueiro em todas as mitologias, como vimos no exemplo de Nietzsche com Apolo e Dioniso. Negar essa dualidade é como tornar-se doente por escolha própria.

A natureza das críticas de Spare à magia de seu tempo é praticamente a mesma de Nietzsche à religião, à filosofia após Platão e à cultura ocidental como um todo. No Livro do Prazer, após explicar o funcionamento de sua técnica de elaboração de sigilos, Spare afirma:

"Através deste sistema, você sabe exatamente a que seu Sigilo tem que relacionar-se.Também você não precisa se vestir como um mágico tradicional, feiticeiro ou padre, construir templos caros, obter pergaminhos virgens, sangue de cabra preta, etc., etc., de fato, nada teatral ou fraudulento."

As técnicas de Spare são o abandono completo de todo simbolismo desnecessário e das coisas fúteis em prol do que é essencial. O que importa não são os rituais e simbolismos que outros criaram, mas sim aqueles que nós mesmos criamos e que estão ligados à nossa particularidade.

Aqui está, no pensamento de Spare, uma ideia muito parecida com a transvaloração de todos os valores, que é o nome dado por Nietzsche ao abandono de toda ordem imposta em prol da criação de nossos próprios valores.

Submeter-se a alguma "doutrina de conformidade" é incompatível com a criatividade. E até mesmo, conforme o próprio Spare sugere, sua técnica é dispensável, sendo apenas um subterfúgio criado "por amor aos meus tolos devotos".

Este minimalismo tem o objetivo de mostrar que a base da magia está na disposição de espírito e na criatividade de cada um, e não em alguma regra, que ainda que sejam utilizadas, não são mais importantes que o próprio praticante. Caso contrário, teremos mais uma vez o apolíneo sem o dionisíaco, a regra morta.

A influência de Nietzsche sobre Spare não é mera suposição, mas algo já consolidado entre os estudiosos do bruxo inglês. O próprio Aleister Crowley, de quem Spare foi discípulo, atesta essa influência — sem deixar, claro, de primeiramente se vangloriar:

"Meu discípulo aprendeu muito do Livro da Lei; de resto, ele trouxe do Livro das Mentiras, William Blake e também de Nietzsche e Tao Te King."

Por mais que Crowley pretendesse se valorizar, a influência nietzschiana em Spare é bem clara, como o desprezo por "autoridades", as críticas às religiões e ao mundo da magia, a necessidade de criar seus próprios significados (e não adotar os significados que outros criaram) e o incentivo à criação de uma arte particular que se ligue diretamente ao subconsciente do próprio praticante.

Spare também desprezou Crowley, o que está de acordo com a perspectiva nietzschiana de desprezar mestres. Bem como sua reclusão está de acordo com os ensinamentos de Lao Tzu no Tao Te King.

Porém, mais importante que tudo isso é a suprema ideia de que a magia já está a priori em cada ser humano. A forma correta de fazer magia não existe. O que existe é a nossa própria forma de fazer magia que talvez não se aplique a outras pessoas.

Por isso mesmo a Magia do Caos, um desdobramento posterior do pensamento de Spare, é uma vertente ocultista colaborativa e não-hierárquica onde os praticantes compartilham suas experiências. Não para serem imitadas ou tratadas como lei, mas para serem adaptadas à particularidade de cada um.

Na Magia do Caos não existem autoridades que ensinam formas corretas. O que existe é, no máximo, praticantes mais experientes auxiliando outros a encontrarem seu próprio caminho. O que importa, talvez, é seguir o mais singelo conselho de Austin Osman Spare: "Viva a magia de uma maneira simples e eficaz."

A Magia do Caos

A Magia do Caos corresponde aos desdobramentos posteriores das ideias de Spare. No entanto, de forma aparentemente contraditória, seus principais autores sugerem treinamentos mentais, vários tipos de rituais, técnicas de meditação, êxtases e devaneios. Mas a diferença fundamental é esta: eles apenas sugerem, mas não determinam as práticas como necessárias.

Tanto Peter Peter Carrol, no Liber Null, Quanto Sherwin, no Livro dos Resultados, ensinam vários tipos de técnicas e exercícios, mas também enfatizam que o praticante deve criar seus próprios rituais baseados em sua experiência de vida e nos resultados alcançados. Isso se o praticante quiser criar um ritual. Tudo em Magia do Caos é ponto de partida, e não "verdade absoluta".

E para isso vale até mesmo utilizar as crenças que o praticante já possui, pois importante mesmo não é aquilo em que se acredita, mas a crença em si mesma. Para a Magia do Caos, qualquer sistema de crenças pode tornar-se uma ponte de acesso ao subconsciente.

Nesse ponto, a Crença Instrumental é uma contribuição filosófica da Magia do Caos que faria um fanático religioso arrancar os cabelos. Se ele pudesse entendê-la, é claro. De qualquer forma, aquela avó tradicional ficaria muito feliz em ver sua neta acendendo uma vela para Nossa Senhora — e um tanto confusa ao ver a mesma neta acendendo outra vela para a deusa Atena ou mesmo para o Diabo.

Em linhas gerais, a despeito das ideias de cada autor, a ideia fundamental de liberdade e particularidade continua sendo a pedra fundamental dessa vertente de magia contemporânea. Assim como a técnica de elaboração de sigilos de Spare continua quase a mesma.

Os rituais e exercícios podem ser um importante portal de acesso tanto às energias fundamentais da vida quanto à própria particularidade do praticante, que se sente mais confortável com eles. Mas de forma alguma se afirma, em Magia do Caos, que "deve-se agir assim".

Se o praticante quiser testar técnicas minimalistas, como apenas fazer um gesto, nada lhe impede. Se funcionar, funcionou. A única coisa que não deve ser feita é não fazer nada.

Outro ponto interessante é o humor e o deboche que se tornaram uma marca da literatura da Magia do Caos, pois não há nada mais refrescante e divertido do que debochar daqueles que se acham sábios. A crueldade tem seus pontos positivos, e não se deve perder tempo tentando argumentar com a "profundidade" e a seriedade desse povo chato pra caralho, sejam religiosos, "magos da luz", espiritualistas e outros bichos escrotos.

A vida é curta, e queremos vivê-la com completude e não ficar perdendo tempo com doutrinas que cheiram a cadáver. A saúde mental agradece, e como afirmou Carrol, “A energia é liberada quando um indivíduo quebra as regras de condicionamento com algum ato glorioso de desobediência ou blasfêmia. Essa energia fortalece o espírito e dá coragem para atos de insurreição“. E o autor do Liber Null prossegue exageradamente: "a magia não se libertará do ocultismo até que tenhamos enforcado o último astrólogo com as entranhas do último mestre espiritual."

E por aí vai. Vale tudo para quebrar os condicionamentos culturais que nos fazem escravos, ainda que nada proíba um caoista de usar astrologia ou aderir a alguma doutrina espiritual qualquer — e mesmo assim continuar lançando seus sigilos, por exemplo. Nada é de fato proibido, desde que funcione (seja em seus aspectos artísticos, terapêuticos ou mágicos).

© Copyright
bottom of page